Eu não vejo na atualidade um único escritor capaz de capturar aquele nuance de personalidade que pulula na juventude e na adolescência, os lampejos de força mais característicos das crianças e mais pitorescos nas mulheres. Aqueles sinais de como serão quando adultas.

Carlos Drummond de Andrade via isso e faltou pouco pra desenhar. Só não desenhou porque era escritor, se fosse desenhista teria feito.

Esta força de personalidade que se destaca como um grito existencial e desperta a curiosidade sobre a adulta que pode brotar é geralmente única, pessoal e intransferível.

É na concepção desse tipo de sutileza que um escritor de verdade se cria.

A ciência não pode catalogar isso, pois isso, não é coletivo, é profundamente individual: é ela e não é outra.

No restaurante, é um dos contos do Drummond que demonstra e prova, o monstro sagrado que é.

No restaurante

– Quero lasanha!

Aquele anteprojeto de mulher – quatro anos, no máximo, desabrochando na ultraminissaia – entrou decidido no restaurante. Não precisava de menu, não precisava de mesa, não precisava de nada. Sabia perfeitamente o que queria. Queria lasanha.

O pai, que mal acabara de estacionar o carro em uma vaga de milagre, apareceu para dirigir a operação-jantar, que é, ou era, da competência dos senhores pais.

– Meu bem, venha cá.
– Quero lasanha.
– Escute aqui, querida. Primeiro escolhe-se a mesa.
– Não, já escolhi. Lasanha.

Que parada – lia-se na cara do pai. Relutante, a garotinha condescendeu em sentar-se primeiro, e depois encomendar o prato:

– Vou querer lasanha.
– Filhinha, por que não pedimos camarão? Você gosta tanto de camarão.
– Gosto, mas quero lasanha.
– Eu sei, eu sei que você adora camarão. A gente pede uma fritada bem bacana de camarão. Tá?
– Quero lasanha, papai. Não quero camarão.
– Vamos fazer uma coisa. Depois do camarão a gente traça uma lasanha. Que tal?
– Você come camarão e eu como lasanha.

O garçom aproximou-se, e ela foi logo instruindo:

– Quero uma lasanha.

O pai corrigiu:

– Traga uma fritada de camarão pra dois. Caprichada.

A coisinha amuou. Então não podia querer? Queriam querer em nome dela? Por que é proibido comer lasanha? Essas interrogações também se liam no seu rosto, pois os lábios mantinham reserva. Quando o garçom voltou com os pratos e o serviço, ela atacou:

– Moço, tem lasanha?
– Perfeitamente, senhorita.

O pai, no contra-ataque:

– O senhor providenciou a fritada?
– Já, sim, doutor.
– De camarões bem grandes?
– Daqueles legais, doutor.
– Bem, então me vê um chinite, e pra ela… O que é que você quer, meu anjo?
– Uma lasanha.
– Traz um suco de laranja pra ela.

Com o chopinho e o suco de laranja, veio a famosa fritada de camarão, que, para surpresa do restaurante inteiro, interessado no desenrolar dos acontecimentos, não foi recusada pela senhorita. Ao contrário, papou-a, e bem. A silenciosa manducação atestava, ainda uma vez, no mundo, a vitória do mais forte.

– Estava uma coisa, hem? – comentou o pai, com um sorriso bem alimentado. – Sábado que vem, a gente repete… Combinado?
– Agora a lasanha, não é, papai?
– Eu estou satisfeito. Uns camarões tão geniais! Mas você vai comer mesmo?
– Eu e você, tá?
– Meu amor, eu…
– Tem de me acompanhar, ouviu? Pede a lasanha.

O pai baixou a cabeça, chamou o garçom, pediu. Aí um casal, na mesa vizinha, bateu palmas. O resto da sala acompanhou. O pai não sabia onde se meter. A garotinha, impassível. Se, na conjuntura, o poder jovem cambaleia, vem aí, com força total, o poder ultrajovem.


Escorpiano de Itabira, Carlos Drummond de Andrade nasceu em 31 de outubro de 1902, em Minas Gerais.

Ingressou em um colégio interno em Belo Horizonte, em 1916. Doente, voltou a Itabira, onde passou a ter aulas particulares. Em 1918, foi estudar em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, também em colégio interno.

Em 1921, começou a publicar artigos no Diário de Minas. Em 1922, ganhou um prêmio de 50 mil réis, no “Concurso da Novela Mineira”, com o conto Joaquim do Telhado.

Em 1923 matriculou-se no curso de Farmácia da Escola de Odontologia e Farmácia de Belo Horizonte. Em 1925 concluiu o curso. Nesse mesmo ano, fundou A Revista, que se tornou um veículo do Modernismo Mineiro.

Drummond lecionou português e Geografia em Itabira, mas a vida no interior não lhe agradava. Voltou para Belo Horizonte e empregou-se como redator no Diário de Minas.

Poeta, contista e cronista brasileiro, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX. Drummond foi um dos principais poetas da segunda geração do Modernismo brasileiro.

Nos deixou em 17 de agosto de 1987, no Rio de Janeiro, aos 84 anos, mas nunca morreu.