O maior símbolo da esquerda no país hoje é sem dúvidas o Partido dos Trabalhadores (PT), algo que se pode dizer desde o fim do período militar em 1985.

Quando falamos em PT, é impossível não tomarmos como referência imediata o nome do ex-presidente Lula, do ex-ministro José Dirceu, a série de escândalos que vão do “mensalão” à Operação Lava Jato, e um período de sombras que comprometeu a segurança jurídica das instituições.

Lula foi deputado federal pelo estado de São Paulo entre 1987 e 1991. Foi o candidato mais votado na eleição de 1986 para o cargo e se tornou líder do partido na Câmara.

É importante lembrar isso pois, ele esteve na Assembleia Nacional Constituinte de 1988 e, junto com o partido, votou contra o texto da Constituição.

Durante e após o processo constituinte, ele deu entrevistas justificando a posição da legenda e apontando os motivos que levaram a sigla a lutar contra a proposta apresentada pelo Congresso na altura.

Mesmo com o voto contrário do PT, o texto foi aprovado e é a Constituição Federal do Brasil hoje.

Durante a Constituinte, o PT tinha 16 deputados na Câmara, todos eleitos em 1986. E embora não fizessem muita diferença numa votação pelo pequeno número, ainda assim eram muito barulhentos.

Os quadros do partido eram os seguintes:

  • Benedita Souza da Silva Santos (RJ);
  • Florestan Fernandes (SP);
  • Eduardo Jorge Martins Alves Sobrinho (SP);
  • Gumercindo de Souza Milhomem (SP);
  • Irma Rosseto Passoni (SP);
  • João Paulo Pires de Vasconcelos (MG);
  • José Genoino Neto (SP);
  • Luís Gushiken (SP);
  • Luiz Inácio Lula da Silva;
  • Olívio de Oliveira Dutra (RS);
  • Paulo Gabriel Godinho Delgado (MG);
  • Paulo Renato Paim (RS);
  • Plínio Soares de Arruda Sampaio (SP);
  • Virgílio Guimarães de Paula (MG);
  • Vitor Buaiz (ES);
  • Vladimir Gracindo Soares Palmeira (RJ).

Conforme registrado pela Fundação Perseu Abramo – e salvo no backup seguro caso alterem – a bancada do Partido dos Trabalhadores, liderada por Lula, foi o único partido a votar contra a Constituição.

Boletim Nacional do PT, páginas 4 e 5, edição de outubro de 1988.

Na página 5 do Boletim Nacional do partido, publicado em outubro de 1988, a legenda diz, logo no primeiro parágrafo, alguns dos motivos pelos quais votou contra a Constituição.

Parágrafo 1, página 5, edição de outubro de 1988, do Boletim Nacional do PT

Quando avaliada globalmente – e isto orientou o nosso voto “não” -, a nova Constituição revela seu caráter seu caráter conservador, elitista, mesmo para um regime como o brasileiro. Mais do que por aquilo que diz, é pelo que não diz que a nova Constituição mostra sua verdadeira face. A nova constituição negou a reforma agrária, negou a estabilidade no emprego e negou a liberdade sindical. Não redistribui riqueza produzida nacionalmente, eleva a propriedade privada à condição de direito fundamental da pessoa humana e mantém intocada a tutela militar no país.

No processo constituinte, a propriedade privada foi “elevada”, segundo o partido, à condição de direito fundamental da pessoa humana.

A esquerda escandalizada com isto, considera a propriedade privada um absurdo.

O grande problema foi a seguinte amarração jurídica:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)

O texto acima é enunciado do Artigo 5º da Constituição Federal que, garante o direito à propriedade privada a todos os cidadãos que morem no Brasil.

Acontece que este artigo está dentro do Título II, que trata dos direitos e garantias fundamentais.

TÍTULO II

DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Ué, mas o qual o problema? Eles podem mudar isso no Congresso e… Não! Não podem!

O artigo 5º, que assegura a propriedade privada como um direito fundamental da pessoa humana, por estar dentro do Título II, é protegida como cláusula pétrea no 4º parágrafo do artigo 60 da Constituição.

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

(…)

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I – a forma federativa de Estado;

II – o voto direto, secreto, universal e periódico;

III – a separação dos Poderes;

IV – os direitos e garantias individuais.

(…)

Assim, conforme demonstrado acima, o artigo 60 protege o artigo 5, de forma que ele não possa ser diminuído em nada, ou seja, a propriedade privada não pode ser abolida e nem relativizada.

Qualquer proposta de emenda à Constituição que apresente uma mera tendência destrutiva contra a propriedade privada, não será nem mesmo discutida.

Naquela época Lula concedeu entrevista ao fotojornalista Duda Bentes da Editora Agil (Agência Imprensa Livre), fornecendo mais uma peça do quebra-cabeças que se tornará mais claro a seguir.

Lula, após estes quatro meses de Constituinte, você acredita que ela possa alterar a ordem jurídica de modo a promover mudanças em benefício do povo?

É preciso lembrar que a composição da Constituinte é resultante de uma legislação eleitoral viciada e do peso que teve o poder econômico. Chegamos aqui sabendo que seria muito difícil a Constituinte fazer leis em benefício do povo. E quando digo isso não digo para desanimar as pessoas, mas para alertar. Tivemos um primeiro momento que foram elaborados vários relatórios de subcomissões contendo avanços. Mas quando chegou a hora de votar, a direita e o centro que juntos formam a maioria, se articularam e mostraram que têm objetivo definido de não deixar que haja avanços nas conquistas da classe trabalhadora e do povo. Os relatórios das Comissões, com exceção da Ordem Social, ficaram bastante conservadores, e em alguns casos como o da Ordem Econômica, pior do que a Constituição em vigor.

Em resumo, Duda perguntou se a constituinte ia esquerdar o suficiente para que os sonhos molhados dos socialistas virassem leis e Lula respondeu que não, que ia dar uma esquerdada aqui e ali, mas que ainda não dava pra alegrar a comunistada de plantão.

O pulo do gato aqui está no final da resposta, quando ele diz: “Os relatórios das Comissões, com exceção da Ordem Social, ficaram bastante conservadores, e em alguns casos como o da Ordem Econômica, pior do que a Constituição em vigor.

Mas afinal, qual o problema com a Ordem Econômica aprovada em 1988?

A ordem econômica é o conjunto de leis que regem a economia do país, na Constituição Federal ela está no artigo 170.

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(…)

II – propriedade privada;

(…)

Então aqui temos um problema sério para os comunistas: a Constituição aprovada definiu dois fundamentos para a ordem econômica do país:

  1. a valorização do trabalho humano;
  2. a livre iniciativa.

E o que isso significa? Que as leis do mercado devem promover a “valorização do trabalho humano“, ou seja, não aumentar impostos, por exemplo, e, a “livre iniciativa“, cuja consequência esperada seria facilitar o processo de aberturas de empresas, eliminando a burocracia na medida do possível.

Estes pontos acima seriam apenas meros incômodos facilmente mutáveis por uma proposta de emenda constitucional no Legislativo, mas aí, os parlamentares constituintes protegeram o ordem econômica ao estabelecerem entre os princípios, a propriedade privada.

Quando então a propriedade privada é colocada como um princípio da ordem econômica, isso equivale a dizer, primeiro em sentido lógico, que as leis de mercado não podem ser contraditórias com a propriedade privada em nenhum contexto, depois em sentido jurídico, que descende do artigo 5, e portanto goza da mesma proteção jurídica.

Em outras palavras, o artigo 170 define que o Brasil é um país capitalista, contra a vontade da esquerda, para a qual não resta nada senão a contumácia.

Fica da seguinte maneira:

Se alguém ainda tiver alguma dúvida que a defesa da propriedade privada incomodou o PT a ponto de tê-los feito votar contra a Constituição em 88, segura essa abaixo.

Dominada por conservadores e alvo de poderosos lobbies empresariais, a Comissão da Ordem Econômica trata da extensão do direito de propriedade, estatização x privatização, nacionalização do subsolo e reforma agrária.

O trecho acima é de uma matéria da época assinada por Marcio Araújo e demonstra claramente como o PT enxergava a comissão da ordem econômica: um lugar no qual se tratava da “extensão” do direito de propriedade.

Mas que extensão seria essa? Aquela descrita por eles mesmos no primeiro documento que apresentei: “eleva a propriedade privada à condição de direito fundamental da pessoa humana“.

Novamente, todos os documentos usados acima estão disponíveis no site da Fundação Perseu Abramo e, caso o site mude o conteúdo, também está salvo em backup seguro.