Nada me tira da cabeça que o escritor é um tipo de psicólogo.

Escritores mergulham nas próprias memórias, autênticas ou inventadas, buscam o ponto exato em que algo se moveu nas suas almas e se esforçam para descrever isso, de forma que nós também possamos sentir o mesmo.

E não é que eles conseguem?

Escrevo muito sobre política e segurança pública, mas vamos dar uma pausa na ideologia e no combate cultural, nas argumentações infinitas e cansativas, no tédio alucinante das “mitadas” e “lacradas“, e vamos só curtir um pouco deste escritor que, agora não me faz qualquer diferença se é de esquerda, de direita, de centro ou está na contramão.

Eu não sei se este conto do Sabino foi escrito para crianças ou sobre crianças. Sei que soa verídico e me lembrou por um instante algumas cenas de Homem de Ferro 3, quando Tony Stark lida com o garoto que o ajuda, com destaque para o momento em que se despede (vale a pena conferir).

Além disto, também sou da época que se assistia o SBT até tarde esperando o Coquetel, que tinha a promessa de mostrar alguma nudez (e que sempre apagava a luz hora que mais queríamos ver), e o inesquecível Perfume de Emmanuelle, que nunca mostrava nada demais, mas que causava uma expectativa tremenda pra qualquer moleque.

Sim, o que Sabino narra neste conto, é pelo menos pra mim, muito familiar.

Sem mais delongas, vamos curtir esse conto do escritor e revirar um baú de lembranças da nossa própria infância.

Hora de dormir

– Por que não posso ficar vendo televisão?
– Porque você tem que dormir.
– Por quê?
– Porque está na hora, ora essa.
– Hora essa?
– Além do mais, isso não é programa para menino.
– Por quê?
– Porque é assunto de gente grande, que você não entende.
– Estou entendendo tudo.
– Mas não serve para você. É impróprio.
– Vai ter mulher pelada?
– Que bobagem é essa? Ande, vá dormir que tem colégio amanhã cedo.
– Todo dia eu tenho.
– Está bem, todo dia você tem. Agora desligue isso e vá dormir.
– Espera um pouquinho.
– Não espero não.
– Você vai ficar aí vendo e eu não vou.
– Fico vendo não, pode desligar. Tenho horror de televisão. Vamos, obedeça a seu pai.
– Os outros meninos todos dormem tarde, só eu que durmo cedo.
– Não tenho nada que ver com os outros meninos: tenho que ver com meu filho. Já para a cama.
– Também eu vou para a cama e não durmo, pronto. Fico acordado a noite toda.
– Não comece com coisa não, que eu perco a paciência.
– Pode perder.
– Deixe de ser malcriado.
– Você mesmo me criou.
– O que? Isso é maneira de falar com seu pai?
– Falo como quiser, pronto.
– Não fique respondendo não: cale essa boca.
– Não calo. A boca é minha.
– Olha que eu ponho de castigo.
– Pode pôr.
– Venha cá! Se der um pio, vai levar palmadas.
– …
– Quem é que anda lhe ensinando esses modos? Você está ficando é muito insolente.
– Ficando o quê?
– Atrevido, malcriado. Eu com sua idade já sabia obedecer. Quando é que eu teria coragem de responder a meu pai como você faz. Ele me descia o braço, não tinha conversa. Eu porque sou muito mole, você fica abusando… Quando ele falava está na hora de dormir, estava na hora de dormir.
– Naquele tempo não tinha televisão.
– Mas tinha outras coisas.
– Que outras coisas?
– Ora, deixe de conversa. Vamos desligar esse negócio. Pronto, acabou-se. Agora é tratar de dormir.
– Chato.
– Como? Repete, para você ver o que acontece.
– Chato.
– Tome, para você aprender. E amanhã fica de castigo, está ouvindo? Para aprender a ter respeito a seu pai.
– …
– E não adianta ficar aí chorando feito bobo. Venha cá.
– Amanhã eu não vou ao colégio.
– Vai sim senhor. E não adianta ficar fazendo essa carinha, não pense que me comove. Anda, venha cá.
– Você me bateu…
– Bati porque você mereceu. Já acabou, pare de chorar. Foi de leve, não doeu nem nada. Peça perdão a seu pai e vá dormir.
– …
– Por que você é assim, meu filho? Só para me aborrecer. Sou tão bom para você, você não reconhece. Faço tudo que você me pede, os maiores sacrifícios. Todo dia trago para você uma coisa da rua. Trabalho o dia todo por sua causa mesmo, e quando chego em casa para descansar um pouco, você vem com essas coisas. Então é assim que se faz?
– …
– Então você não tem pena de seu pai? Vamos! Tome a bênção e vá dormir.
– Papai.
– Que é?
– Me desculpe.
– Está desculpado. Deus o abençoe. Agora vai.
– Por que não posso ficar vendo televisão?


Fernando Sabino nasceu em 12 de outubro de 1923. Libriano de Belo Horizonte, onde também se criou.

Morria de medo de morrer afogado. 🙂

Começou a escrever contos quando estava no ginásio e aos treze anos teve uma história policial publicada na antiga revista Argus. Enviava crônicas para o concurso de uma revista e, quando uma delas era premiada, recebia vinte e cinco mil réis.

Na época, quis dispensar a mesada do pai, porque achava que já podia viver por conta própria. Bons tempos, o sujeito aprendeu o custo da vida cedo.

Nos anos 40 começou a conviver com escritores de Belo Horizonte. Em 44 mudou-se para o Rio de Janeiro onde viveu por muito tempo. Esteve nos EUA por dois anos, visitou Cuba em 60 e foi adido cultural da Embaixada do Brasil em Londres, entre 64 e 66.

Achava que tinha por vocação tocar bateria em orquestra de jazz e tocou como amador em várias orquestras.

Ia ao Maracanã de vez em quando, principalmente nos jogos do Botafogo.

Nos deixou em 11 de outubro de 2004, no Rio de Janeiro.